Monday, March 26, 2007

 

But he kept rambling on... Not 'cause there was any reason for it... just want to move on

Independentemente da maneira como as coisas se apresentaram aos olhos do observador, há circunstâncias que nos falam a todos de maneira idêntica. Existem tendências pessoais que se matizam uma panóplia de sentimentos prováveis, as quais têm um efeito tão menos intenso, quanto a severidade da situação. Se nos referirmos a experiências dramáticas. Mas as reacções são espectros irrequietos, e desencorajam mesmo o mais resoluto a formar opiniões definitivas sobre a mente humana.
No entanto, o comentário de escape de que os cursos de sociologia não servem sequer para estrelar ovos, pode ser um extremo indesejado pelos que não querem ser rotulados de cépticos irrecuperáveis...

A sua respiração quebrou-se abrupta e silenciosamente. Os músculos das costas retesaram-se instintivamente, e levantaram ligeiramente o cobertor. Os seus olhos abriram-se, só para encontrar o mesmo escuro a que já estavam habituados no aconchego das pálpebras. Ainda antes de tomar consciência do resto do corpo, teve a impressão clara que alguma coisa tinha acontecido. Instintivamente, a sua cabeça rolou para a esquerda. Três números flutuavam no quarto, feitos de vermelho pálido. 3.43.
Conhecia o seu sono. Era leve e irritadiço, mas não o libertava sem motivo para o estado de vigília com muita frequência. Levantou-se, tacteando o chão com o pé descalço, ao mesmo tempo que o colchão soltava um ligeiro gemido. Sentiu o coração apertado, os sentidos despertos e uma estranha lucidez, dada a hora da noite, enquanto caminhava cautelosamente para a cozinha. Os seus olhos viam formar-se sombras, à medida que se misturavam com a escuridão, mas desde que se conseguia lembrar, não sabia ver as coisas de outra maneira. Preocupava-se mais com manter as sombras no seu campo visual, do que averiguar de que eram feitas.
Chegou á bancada e misturou o pó castanho com o leite que acabara de aquecer. Sabia que não ia dormir mais, e tinha desistido de lutar com essa vontade. Mais valia fazer da insónia o seu propósito, com café. Odiava perder ao ponto de nem tentar. Há medida que se acomodava no sofá e acendia a televisão, os seus pensamentos foram-se tornando mais leves, na antecipação do calmo estado de hipnose induzido pelas televendas.
Colchões insufláveis, anéis de ouro branco, trens de cozinha, ferramentas de bricolage, óculos de sol ajustáveis, cintas adelgaçantes, previsões do futuro, colecções de CDs dos anos oitenta, noventa, dos mais românticos, dos mais mexidos, dos mais descontraídos, máquinas de fazer sumo, de fazer gelados, de fazer saladas e, claro, um exército inteiro de instrumentos coloridos que moldam os abdominais. Não deixava de ser um pouco desconcertante que os produtos que eram vendidos ás quatro da manhã estivessem completamente desprovidos de orientação em relação a mercados alvo.
‘’Isto é um bocado estúpido. Os gajos que produzem isto não fazem ideia do que é o mundo real. Não estou a ver donas de casa a levantarem-se ás quatro da manhã para verem coisas para comprar, e as tentativas desesperadas que eles fazem para fazerem as pessoas sentirem-se mal com o próprio corpo, não devem ter grande receptividade nos desempregados que possam estar acordados a esta hora. Porra, a única maneira de me fazerem levantar agora mesmo, e pegar no telefone é anunciarem garrafões de 5 litros de valium, e mesmo assim acho que...’’
Sentiu uma satisfação interior. Estava habituado a ouvir-se a si mesmo falar, e a regozijar com as conclusões absolutamente brilhantes a que chegava. As televendas tinham sido feitas a pensar na credulidade e na ignorância, e apelavam ao mesmo instinto que um dia tinham apelado os saltimbancos e as feiras. Tinham a agressividade do marketing guerrilheiro, e a capacidade persuasiva de um feirante na Praça de Espanha. Enquanto uma senhora de decote pronunciado e sorriso de hospedeira dizia que aquele faqueiro custava não mil, não cem, mas dez, ele lembrou-se de um qualquer capítulo de um livro que tinha lido há anos, que abordava as técnicas de venda de carros em segunda mão, durante a grande depressão nos EUA. Não pode deixar de sorrir para si mesmo, enquanto pensava que as maneiras de enganar as pessoas se tinham mantido ao longo do tempo, talvez estivessem até mais simples, inferindo depois conclusões, para ele óbvias, úteis na sua teoria que a estupidez é galopante, e infecta grande parte da população mundial.
A casa estava silenciosa, inserida como uma peça de lego nos prédios envolventes que formavam o beco das canas verdes em Lisboa. As suas traseiras davam para um desses espaços defendidos em todas as direcções por edifícios, cujo acesso se faz apenas por uma rua tímida, pejada por pinturas de adolescentes menos tímidos, influenciados por um sentido artístico apurado pela cultura hip-hop urbana, por situações familiares precárias, e por ecrãs de televisão que emitem mensagens contraditórias com o mundo envolvente, e muitas vezes consigo próprias. Havia também um relvado diminuto e algumas árvores que escondiam os pisos superiores dos prédios.

Comments:
so pa marcar presença... li, mas n tenho nenhum comentário brilhante a fazer... i must be coming down w/ sth! eheheheh
 
não digas isso das televendas... Se não fossem elas havia suicídios colectivos nas madrugadas do mundo. Muito bom! Abraço
 
"Tinham a agressividade do marketing guerrilheiro" mereces o meu respeito depois de ler tão genial frase!
 
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